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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mec e a Língua Portuguesa

Leia os textos e escreva uma dissertação em prosa!Delimite o tema, pense na sua tese, argumente. 

Entrevista - Evanildo Bechara: Em defesa da gramática

Um dos mais respeitados especialistas da língua portuguesa condena os colegas que se insurgem contra a norma culta e diz que disseminá-la é crucial para o país avançar.

O pernambucano Evanildo Bechara é um dos mais respeitados gramáticos da língua portuguesa. Doutor em letras e autor de duas dezenas de livros, entre os quais a consagrada Moderna Gramática Portuguesa, Bechara, de 83 anos, passou décadas lecionando português, linguística e filologia românica em universidades do Rio de Janeiro, da Alemanha e de Portugal. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele é, por profissão, um propagador do bom uso do português. A fala mansa de Bechara contrasta com o tom incisivo de suas críticas a certa corrente de professores entusiastas da tese de que é "preconceito linguístico" corrigir os alunos. Diz Bechara: "Alguns de meus colegas subvertem a lógica em nome de uma doutrina que só serve para tirar de crianças e jovens a chance de ascenderem socialmente".

A defesa que o livro Por uma Vida Melhor, distribuído a 500.000 estudantes ao custo de milhões de reais para o bolso dos brasileiros, faz do uso errado da língua deveria ter provocado uma revolta maior, não?
A defesa que foi feita desse livro decorre de um equívoco. Estão confundindo um problema de ordem pedagógica, que diz respeito às escolas, com uma velha discussão teórica da sociolinguística, que reconhece e valoriza o linguajar popular. Esse é um terreno pantanoso. Ninguém de bom-senso discorda de que a expressão popular tem validade como forma de comunicação. Só que é preciso que se reconheça que a língua culta reúne infinitamente mais qualidades e valores. Ela é a única que consegue produzir e traduzir os pensamentos que circulam no mundo da filosofia, da literatura, das artes e das ciências. A linguagem popular a que alguns colegas meus se referem, por sua vez, não apresenta vocabulário nem tampouco estatura gramatical que permitam desenvolver ideias de maior complexidade - tão caras a uma sociedade que almeja evoluir. Por isso, é óbvio que não cabe às escolas ensiná-la.

Alguns de seus colegas consideram a norma culta um instrumento de dominação das elites...
Isso não passa de ortodoxia política. Eles subvertem a lógica em nome de uma doutrina. É semelhante ao que uma corrente de comunistas russos apregoava quando Josef Stalin (1879-1953) chegou ao poder. Os comunistas queriam estabelecer algo como "a nova língua do partido", um absurdo que enterraria a norma culta. O próprio Stalin condenou essa aberração e manteve a norma erudita, o imenso manancial dos grandes escritores russos, como a língua oficial da União Soviética. Agora, um grupo de brasileiros tenta repetir essa mesma lógica equivocada, empenhando-se em desvalorizar o bom português.

Qual o papel da norma culta de uma língua?
Não resta dúvida de que ela é um componente determinante da ascensão social. Qualquer pessoa dotada de mínima inteligência sabe que precisa aprender a norma culta para almejar melhores oportunidades. Privar cidadãos disso é o mesmo que lhes negar a chance de progredir na vida. Para mim, o linguista italiano Raffaele Simone, ainda em atividade, foi quem situou esse debate de forma mais lúcida. Ele critica os populistas que, ao fazer apologia da expressão popular, contribuem para perpetuar a segregação de classes pela língua. Pois justamente é o ensino da norma culta, segundo Raffaele, que ajuda na libertação dos menos favorecidos. Suas palavras se encaixam perfeitamente no debate atual.

Quais as raízes do ranço ideológico brasileiro?
Vemos resquícios de um movimento que surgiu no meio acadêmico na década de 60, pregando a abolição da gramática nas escolas. Eram tempos de ditadura militar, período em que, por princípio, se contestava qualquer tipo de norma ou autoridade. Para se ter uma ideia, agitava-se nas universidades a bandeira "é proibido proibir". Isso ecoava nos colégios - um verdadeiro desastre. Foi nesse contexto que começaram a estudar no Brasil a sociolinguística. Em diferentes tempos e sociedades, os estudiosos sempre estiveram atentos aos diferentes usos da língua. A primeira gramática portuguesa, que data de 1536, já apontava tais variantes. Só que, repito, essas são teorias que nunca deveriam ter deixado as fronteiras da academia. O próprio Mattoso Câmara (1904-1970), a quem se atribui a introdução da linguística no país, já alertava para os perigos na confusão de papéis entre teóricos e professores.

Esse tipo de debate é levado à sério em algum outro país?
Nenhum país desenvolvido prega a desvalorização da norma culta na sala de aula ou inclui esse tipo de ideia nos livros didáticos. Esse desserviço aos alunos e à sociedade como um todo só encontra eco mesmo no Brasil.

Como o domínio disseminado da norma culta da língua pode contribuir para o avanço do país?
Antes de tudo, formando cidadãos mais capacitados para preencher vagas que demandem alta qualificação, algo crucial para a economia. Ao questionar a necessidade do estudo da gramática nas escolas do país, linguistas como Marcos Bagno e tantos outros estão nivelando por baixo o ensino do português. Acabam reduzindo com isso as chances de milhões de estudantes aprenderem a se expressar com correção e clareza, tanto na escrita quanto na fala. A história reforça a importância disso. Ela é farta em exemplos de como uma oratória eficaz, por exemplo, pode catapultar carreiras.

Essa capacidade tem atualmente mesmo valor que no passado?
O domínio da língua falada vem sendo um importante instrumento para protagonismo na vida pública desde Antiguidade. Os principais líderes políticos sempre dominaram a língua falada. No auge da democracia clássica grega, valorizava-se tanto a oralidade que as primeiras disciplinas que uma criança aprendia na escola eram lógica, gramática e retórica. Em Roma, os inimigos do estadista e filósofo Marco Túlio Cícero (106 a.C. A 43 a.C.) o mataram e sua língua teria sido cortada como vingança contra seu poder como orador. A norma culta bem falada persiste como um valor nas sociedades modernas. O excelente domínio do inglês revelado por Winston Churchíll (1874-1965) foi instrumental em sua brilhante carreira, lembrada por discursos que mesmerizavam as audiências.

Como se explica a eficácia do discurso cheio de erros de português do ex-presidente Lula?
Apesar das frequentes incorreções, Lula faz parte do grupo de políticos com grande ler de retórica. Os erros o aproximam do povo, uma vez que como ele, a maior parte dos brasileiros também passa ao largo da norma culta. Isso faz com que se identifiquem com seu discurso. Não significa que as pessoas devam ter Lula como um modelo. Para conquistar um bom lugar no mercado de trabalho, o pré-requisito principal é que elas não saiam por aí dizendo "Nós pega o peixe", versão ensinada no livro distribuído às escolas pelo Ministério da Educação. É preciso que se atente ainda para outro fato: além de divulgarem um discurso que funciona na prática como um obstáculo à evolução dos indivíduos, os teóricos brasileiros que pregam o que chamo de mesmice idiomática atrapalham o próprio progresso do idioma. O resultado é que o Brasil está ficando para trás nesse campo.

De que maneira?
Quanto mais a norma culta de uma língua é praticada, mais esse idioma e sua gramática evoluem. Para dar a dimensão de nosso atraso nessa área, a academia espanhola acaba de publicar uma gramática de 4.000 páginas. O volume mais extenso que temos no Brasil possui 1.000 páginas, um quarto do tamanho. Um país que se pretende globalizado não pode se dar o direito de empobrecer seu idioma. As línguas mais difundidas no mundo são justamente aquelas mais avançadas do ponto de vista gramatical. É o caso do francês e do inglês. As pessoas costumam dizer que a língua inglesa é simples demais, mas isso só vale para certos aspectos. Sua fonética e o emprego que exige das preposições são complicadíssimos. O vocabulário inglês é extremamente rico. Afinal de contas, estamos falando do produto de uma cultura humanística e científica notável.

Por que tantos brasileiros falam e escrevem tão mal?
O domínio do idioma é resultado da educação de qualidade. Isso nos falta de maneira clamorosa. O ensino do português nas escolas é deficiente. Uma das razões recai sobre o evidente despreparo dos professores. É espantoso, mas, muitas vezes, antes de lecionarem a língua, eles não aprenderam o suficiente sobre a gramática. Além disso, não detêm uma cultura geral muito ampla nem tampouco costumam ler os grandes atores, como faziam os antigos mestres. A verdade é que a maioria não tem vocação para o magistério. Só escolhe essa carreira porque, quando chega o momento de ingressar na universidade, ela é uma das menos concorridas no vestibular. A situação do mercado de trabalho também conspira contra a permanência dos melhores professores nas salas de aula. Por falta de incentivos, muitos abandonam o magistério para se empregar na iniciativa privada como revisores, tradutores e editores.


A adoção de palavras estrangeiras no Brasil é exagerada?
Sou a favor de combater os estrangeirismos que nada acrescentam à riqueza da nossa língua. Não faz sentido nenhum usarmos "delivery" no lugar de entrega ou "coffee-break" para nos referir a intervalo. Esse hábito é fruto de um esnobismo cultural. Mas também não endosso a tese de que, por definição, os vocábulos estrangeiros corrompam a pureza da nossa língua. Eles podem até enriquecê-la à medida que ajudam na expansão do vocabulário. O idioma que acolhe uma palavra de outra língua tende, inclusive, a lhe emprestar características próprias. Só para citar um caso, hoje não escrevemos mais "yacht", em inglês, mas, sim, iate.

Não há excesso de reformas ortográficas no Brasil?
É verdade que muitos países jamais passaram por reformas ortográficas. No Brasil, elas tiveram os mais diversos propósitos e, apesar de certa confusão que acarretaram no princípio, acho que acabaram trazendo benefícios para a língua. As primeiras mudanças ocorreram no início do século XX, impulsionadas por uma necessidade didática. O português era, então, erudito demais. Com as mudanças, a ideia era distanciá-lo do latim, tornando-o mais acessível ao homem comum. Já a última reforma, que passou a vigorar em 2009, envolve interesses políticos e comerciais. A língua portuguesa é a única que tem duas ortografias oficiais - a do Brasil e a de Portugal. Parece razoável unificá-las para simplificar a redação de documentos e contratos internacionais.


A internet está empobrecendo a língua culta?
Não vejo a coisa dessa maneira. Se uma criança for bem apresentada à norma culta na escola, vai saber utilizá-la quando necessário, fora do ambiente da rede. Na internet, de fato, pratica-se uma linguagem muito particular, repleta de abreviações e símbolos no lugar de palavras. Tal modo de expressão é só mais um dentre tantos outros que uma mesma pessoa é capaz de assimilar. O maior perigo da rede, a meu ver, é de natureza distinta. Preocupa-me que ela tome de crianças e jovens um tempo precioso em que eles poderiam estar debruçados sobre os livros - e aprimorando assim o bom português.

Dona Norma - JOSÉ MIGUEL WISNIK

O imbróglio da vez é a discussão sobre o manual de ensino da língua portuguesa distribuído pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi nos blogs e ouvi no rádio do carro vozes, desde sentenciosas a sardônicas e sarcásticas, dizendo que se tratava de uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido, preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática. Criticava-se a adoção do "lulês" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o capítulo do livro em questão e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?

Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem rendimento político imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso, em 1967. Os estudos linguísticos mostravam que a prática das línguas é sujeita a muitas variantes regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramáticos, é uma entre outras variantes da língua, não necessariamente a mais, ou a única "correta". Desse ponto de vista, científico e não normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas, reconhecidas na sua eficácia comunicativa, sem privilegiar um padrão verbal ditado pelos segmentos letrados como único a ser seguido.

Discutirei adiante algumas consequências pedagógicas disso. Mas a que me parece inquestionável, e adotada com propriedade no livro de Heloisa Ramos, é a importância de não se estigmatizar os usos populares da língua, reconhecendo em vez disso a validade do seu funcionamento. É nessa hora que ela dava como exemplo a famigerada frase "Nós pega o peixe", ou, então, "Os menino pega o peixe". A autora não diz que é assim que se deve escrever. Mas também não deprecia a expressão: preconceitos à parte, é preciso reconhecer que no seu uso comum a frase funciona, porque a marca do plural no pronome ou no artigo é suficiente para indicar que a ação é exercida por um conjunto de meninos, e não por um só. Desse ponto de vista, eminentemente pragmático, nenhum erro.

A seguir, no mesmo espírito pragmático, o livro afirma claramente a importância de que a escola promova o domínio da norma culta, ligado à língua escrita, justificado pela sua necessidade em situações específicas (aqui virá a minha discordância). Dá exemplos de como corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critérios, como ele deve ganhar coesão interna, articulação sintática, clareza nos seus recortes (pontuação) e seguir os critérios ortográficos.

A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, não o leram, é uma estridente confirmação, em primeiro lugar, daquilo que o próprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo que ele não diz, mas que deveria dizer.

Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o livro é um atentado, tornado oficial, à língua portuguesa, pelo respeito localizado que ele dá às variantes populares de fala que não usam extensivamente as flexões, isto é, as normas letradas de concordância, é um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a língua como um instrumento de prestígio, de privilégio e de poder.

Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correção linguística, desconsiderando todo o resto, é uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua perpetuação. Culta, neste caso, é de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso da denúncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crônico, difuso, contagiante.

Hélio Schwartsman, em compensação, assim como Cristovão Tezza no programa de Monica Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hélio lembra que a passagem do latim às línguas românicas, o português incluído, só se deu graças às províncias que passaram a falar um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinações clássicas. Sem essa dinâmica e o correspondente afrouxamento flexional, estaríamos até hoje falando latim e usando as cinco declinações.

O inglês, por sua vez, é muito menos flexional que o português. A frase "the boys get the fish", por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, é, do ponto de vista estrutural, uma espécie de "nós pega o peixe" institucionalizado.

O horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O domínio da norma culta é justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade" linguística à sua disposição, para que não sofra preconceito, para que se desincumba em situações formais que assim o exigem. É muito pouco. A norma culta não é nem um mero adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A educação pela língua não pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um equipamento universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar nela e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de grandes consequências.

Não se pode fazer por menos. Além de "Para uma vida melhor", tem que ser também "Para uma vida maior".
Sergio Fausto - O Estado de S.Paulo
Disseram que o livro Por uma Vida Melhor estaria autorizando o desrespeito generalizado às regras da concordância e abolindo a diferença entre o certo e o errado no emprego da língua portuguesa. Tudo isso com o beneplácito do MEC.
A celeuma ganhou os jornais nas últimas semanas. Foi motivada por um trecho no qual se afirma que o aluno pode dizer "os livro". Parece a senha para um vale-tudo na utilização da língua. Não é, mas assim foi lido.
Não conheço a autora nem sou educador, embora vínculos de família me tenham feito conviver com educadoras desde sempre. Escolhi comentar o caso não apenas porque se refere a um tema importante, mas também porque exemplifica um fenômeno frequente no debate público. Tão frequente quanto perigoso.
O procedimento consiste na desqualificação de ideias sem o mínimo esforço prévio de compreendê-las. Funciona assim: diante de mero indício de convicções contrárias às minhas, detectados em leitura de viés ou simples ouvir dizer, passo ao ataque para desmoralizar o argumento em questão e os seus autores. É a técnica de atirar primeiro e perguntar depois. A vítima é a qualidade do debate público.
Existem expressões, e mesmo palavras, que têm o condão de desencadear essa reação de ataque reflexo. Há setores da opinião pública para os quais a simples menção à privatização é motivo para levar a mão ao coldre. No caso em pauta, o gatilho da celeuma foi a expressão "preconceito linguístico" para qualificar a atitude de quem estigmatiza o "falar errado" da linguagem popular. Houve quem aventasse a hipótese de que o livro visasse à justificação oficial dos erros gramaticais do ex-presidente Lula. Um despropósito.
Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as "provas" do suposto crime contra a língua portuguesa. Chama-se Escrever é diferente de falar, título que já antecipa uma preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São algumas páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15 minutos de leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a sobreposição da linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como chegou a ser escrito.
Ao contrário, no capítulo em questão, a autora busca justamente marcar a diferença entre a norma culta, indispensável na escrita formal, e as variantes populares da língua, admissíveis na linguagem oral. Não se exime ela do ensino das regras. Mas, em vez de recitá-las, vale-se da técnica da reescrita. Há uma seção particularmente interessante sobre o uso da pontuação. Vale a pena citar uma passagem: "(...) uma cuidadosa divisão em períodos é decisiva para a clareza dos textos escritos. A língua oral conta com gestos, expressões, entonação de voz, enquanto a língua escrita precisa contar com outros elementos. A pontuação é um deles".
Noves fora um certo ranço ideológico, aqui e ali, o livro é de bom nível. Trabalho de gente séria, que merece crédito. E um pouco mais de respeito. Fica o testemunho: a ONG responsável pela obra tem entre seus dirigentes, se a memória não me trai, profissionais responsáveis, no passado, por um dos melhores cursos de Educação para Jovens e Adultos da cidade de São Paulo, o supletivo do Colégio Santa Cruz.
É justamente a esse público que o livro se dirige. Ele é formado por alunos que estão travando contato com a norma culta da língua mais tarde em sua vida. Nesse contato tardio, frequentemente se envergonham do seu falar. Emudecem. Reconhecer a legitimidade do repertório linguístico que carregam é condição para que possam aprender. Não se trata de proteger esse repertório das convenções da norma culta, para supostamente preservar a autenticidade da linguagem popular. Isso, sim, seria celebração da ignorância. E populismo. O livro não ingressa nesse terreno pantanoso.
O que está dito acima se aplica também às crianças quando iniciam o processo de alfabetização. Sabe-se que o primeiro contato com a norma culta da língua é crucial para o desempenho futuro do aluno como leitor e escritor. Sabe-se igualmente que a absorção da norma culta é um longo processo. O maior risco é o de bloqueá-lo logo ao início, marcando com o estigma do fracasso escolar os primeiros passos do aprendizado. No início dos anos 1980, mais de 60% dos alunos eram reprovados na primeira série do ensino fundamental, o que se refletia em altas taxas de evasão escolar. Embatucavam no contato com as primeiras letras (e as primeiras operações aritméticas). Melhoramos desde então? Sim, as taxas de repetência, defasagem idade/série e evasão escolar diminuíram. Parte da melhora se deve à adoção da progressão continuada, outra presa fácil da distorção deliberada, pois passível de ser confundida com a aprovação automática.
Não aprendemos, ainda, porém, como assegurar a qualidade desejada no aprendizado da língua. Mas há sinais de vida. O desempenho dos alunos em Português vem melhorando, em especial no primeiro ciclo do ensino fundamental, conforme indicam avaliações nacionais e internacionais, ainda que mais lentamente do que seria desejável e necessário. A verdade é que o desafio é enorme: não faz muitos anos que as portas da educação fundamental se abriram para todos e a escola passou a ter de ensinar ao "filho do pobre" - dezenas de milhões de crianças - a norma culta da língua, que seus pais não dominam.
Há muita discussão e aprendizado a serem feitos para vencer esse desafio. É ótimo que todos queiram participar. Mas é preciso educar-se para o debate. Isso implica desde logo dar-se ao trabalho de conhecer o tema em pauta e ter a disposição de entender o ponto de vista alheio antes de desqualificá-lo. Sem querer ser pedante, é o que dizia Voltaire, séculos atrás: "Aprendi a respeitar as ideias alheias, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar". Todo mundo ganha com isso.
DIRETOR EXECUTIVO DO iFHC, É MEMBRO DO GACINT-USP
E-MAIL: SFAUSTO40@HOTMAIL.COM 

Que língua a escola deve ensinar?
Os linguistas sabem que o Português é muito mais amplo do que a língua escrita culta que é ensinada na escola — mas a escola sabe, mais que os linguistas, que essa é a língua que ela deve ensinar.

Um grupo de estudantes de Letras veio me visitar: faziam um trabalho para a faculdade e queriam a minha opinião sobre o papel do professor de Português “neste novo milênio, frente às novas teorias lingüísticas e aos novos meios eletrônicos de comunicação”. Não pude deixar de sorrir diante de tanta novidade numa frase só; olhei-os com simpatia — todos vão ser meus colegas, em breve — e respondi que o nosso papel continua a ser o mesmo de sempre: transmitir ao aluno a língua da nossa cultura e ensiná-lo a se expressar em prosa articulada.
Talvez tenham ficado espantados com a resposta, mas eu não estranhei a pergunta deles. Sei que o avanço da Lingüística, com tudo o que nos trouxe de bom, provocou também essa curiosa insegurança da escola quanto aos objetivos do ensino do nosso idioma. No entanto, faço questão de repetir que esses objetivos não mudaram e não devem mudar, por mais que os argumentos em sentido contrário pareçam engenhosos. Um lingüista, por exemplo, convidava seus leitores a imaginar um documentário de TV em que o narrador informasse que a canção de acasalamento da baleia azul continha vários erros grosseiros, ou que os gritos dos chimpanzés da Malásia vinham degenerando progressivamente. Seria absurdo? Ora, se não podemos falar em erros da baleia azul, perguntava ele, triunfante, como podemos falar em erros na fala humana? Como pode a escola tentar impingir uma variedade do idioma, tachando as demais de inadequadas? — e por aí ia a valsa.
A este tipo de raciocínio engraçadinho, que obteve grande sucesso nos anos 70, contraponho uma verdade que todos nós conhecemos: os lingüistas sabem que nosso idioma é muito mais amplo do que a língua escrita culta que é ensinada na escola — mas a escola sabe, mais que os lingüistas, que essa é a língua que ela deve ensinar.
O que a escola faz, e tem a obrigação de fazer — porque só ela pode fazê-lo de maneira progressiva e sistemática — é ensinar o futuro cidadão a  se utilizar dessa forma  tão especial de língua que é alíngua escrita culta, cujas potencialidades espantosas aparecem na obra de nossos grandes autores. Machado de Assis, Vieira, Eça de Queirós, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, cada um à sua maneira, são ótimos exemplos. É nesta língua que se cria e organiza a maior parte de nosso pensamentos e sentimentos, seja escrevendo, seja falando (pode parecer paradoxal a inclusão da fala, mas não é; há muito se distingue a língua que o indivíduo fala antes do seu letramento e a língua que ele fala depois). Todas as demais variedades são respeitáveis como fenômeno cultural e antropológico, mas não é nelas que a escola deve concentrar seus esforços.
Nosso aluno espera que ensinemos a ele a usar essa língua que constitui a modalidade do Português que todas as pessoas articuladas aceitam como a mais efetiva para expressar seu pensamento. Dizendo de um jeito mais rude: se houvesse forma melhor, ela estaria sendo usada. Todas as sociedades reconhecem isso; o velho Bloomfield, um dos lingüistas “duros” do estruturalismo americano, ressaltou que a comunidade, em várias tribos de nativos por ele estudadas, sabia apontar muito bem aqueles que falavam melhor do que os outros. Na sua sabedoria, o público maciçamente tem repelido as tentativas desastradas de fazer a escola aceitar como válida toda e qualquer forma de expressão. Quem não lembra a triste moda dos anos pós-Woodstock, em que defendíamos com entusiasmo a valorização da linguagem do vileiro como algo digno de ser preservado? Hoje sabemos que nada mais era do que uma alegre fantasia da classe média acadêmica, que terminava cristalizando uma categoria de excluídos, contra a vontade de seus pobres falantes. “Não é para isso que a gente estuda”, dizem eles — e  chamá-los de conservadores é o mesmo que dizer, com arrogância, que nós é que sabemos o que é bom para a sua vida. Já vimos isso na política, em que alguns têm a petulância de dizer que o povo não soube escolher …
Agora, por que a prosa? Porque escrever prosa nos torna homens mais exatos, como percebeu Francis Bacon. Escrever é disciplinar o pensamento; o domínio da prosa impõe rigorosa disciplina à nossa mente. Ao escrever, vamos deixando uma trilha do nosso pensamento, permitindo que voltemos sobre nossos próprios passos para encontrar o ponto em que nos desviamos da rota certa e onde nos enganamos. Além disso, precisamos seguir uma série de convenções que permitam que as outras mentes acompanhem o caminho descrito pelo nosso raciocínio. Não vou exagerar, mas acredito que o pensamento articulado é impossível para uma pessoa que não consiga construir um texto coerente e também articulado — e não tenho certeza do que aqui é causa, o que é efeito. Uma escola que não ensine o aluno a escrever com clareza e coerência está comprometendo algo muito mais profundo que aquilo que os antigos chamavam de uma “boa redação”.
Muitos alegam que essas regras são mantidas apenas porque (é) assim se afirma o poder da elite, dividindo a população entre os que conseguem e os que não conseguem entendê-las. Em parte, é verdade: quem as domina consegue expressar-se  melhor e argumentar melhor, o que resulta inevitavelmente em maior poder sobre os outros. Mas não são regras estabelecidas por capricho ou por acaso; nasceram da experiência acumulada em milhares de tentativas de expressar-se articuladamente no Português, ao longo dos últimos oito ou nove séculos, num esforço gigantesco que produziu esse magnífico instrumento de expressão e de argumentação. Se essa língua é usada para dominar e submeter, pode, com muito mais razão, ser usada para libertar. Em nome da igualdade social, essa é a missão da escola; agora, como fazer isso, em escala universal e democrática, é uma questão que deve ser resolvida estrutural e politicamente pelos governos e pela sociedade, não pelos professores de Português.
[Artigo publicado na revista Arquipélago, do IEL-RS, em 2005].
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Repercutiu na mídia o fato de o MEC (Ministério da Educação e Cultura) adotar um livro de português no qual os autores, ligados à ONG Ação Educativa, justificam e validam na escola expressões linguísticas do tipo: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. A julgar pelos critérios linguísticos e pedagógicos adotados na obra, corrigir ou reprovar erros dessa natureza seria incorrer em preconceito linguístico. Aliás, a correção seria injustificada, já que não se trata de erro, mas de simples variação linguística. Há aí uma confusão que procurarei esclarecer adiante. 
O MEC justifica a adoção do livro alegando que corresponde aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Suponho, baseado no mesmo critério, que o aluno carente poderia justificadamente escrever “Os Parâmetro Curricular Nacionais”. Infelizmente, não é o meu caso. Sendo assim, sinto-me constrangido a escrever seguindo a norma culta relativa à concordância nominal. Pensando melhor, vou me reeducar lendo esses livros adotados pelo MEC, primores do populismo pedagógico corrente na nossa política educacional, para não ser vítima de preconceito linguístico. 
Seguindo ainda as justificativas expostas pelo MEC, a adoção da norma linguística culta nas escolas não passa de um mito do qual ele louvavelmente se declara determinado a nos libertar. É sem dúvida alentador saber que uma das missões confessas do MEC é libertar o aluno da tirania que nós professores sobre ele exercemos erradamente apoiados numa noção normativa que não passa de um mito. Esse mito opressor precisa ser varrido das nossas escolas
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o critério, que o aluno carente poderia justificadamente escrever “Os Parâmetro Curricular Nacionais”. Infelizmente, não é o meu caso. Sendo assim, sinto-me constrangido a escrever seguindo a norma culta relativa à concordância nominal. Pensando melhor, vou me reeducar lendo esses livros adotados pelo MEC, primores do populismo pedagógico corrente na nossa política educacional, para não ser vítima de preconceito linguístico. 
Seguindo ainda as justificativas expostas pelo MEC, a adoção da norma linguística culta nas escolas não passa de um mito do qual ele louvavelmente se declara determinado a nos libertar. É sem dúvida alentador saber que uma das missões confessas do MEC é libertar o aluno da tirania que nós professores sobre ele exercemos erradamente apoiados numa noção normativa que não passa de um mito. Esse mito opressor precisa ser varrido das nossas escolas. 

Trocando a justificação da ignorância em miúdos (ou inguinorância, como escreveu Clovis Rossi com preciso corte polêmico na sua coluna da Folha de S. Paulo), insistir numa pedagogia baseada nesse mito seria mutilar culturalmente o código linguístico do aluno. Além de constituir uma forma de violência simbólica, como afirmou João Paulo Filho, essa atitude desprezaria o fato de que a língua escrita “não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos”. 
Ora, quem disse que postular uma pedagogia baseada na norma culta da língua é confundir a língua escrita com a língua falada ou com os dialetos compreendidos pela língua portuguesa? O reconhecimento da distinção corrente entre língua falada e língua escrita é uma verdade elementar. Mais que essa distinção, é também elementar o reconhecimento da variedade de códigos linguísticos compreendidos pela língua geral que falamos. Eles decorrem das diferenciações objetivas inscritas nas variáveis de classe e região compreendidas por todo complexo linguístico. Uma coisa é reconhecer e respeitar esses fatos comezinhos da realidade linguística de qualquer cultura, outra bem diferente é desqualificar a norma culta, objetivo e ideal de todo processo educativo, em nome de um suposto princípio de democracia linguística que não passa de populismo pedagógico. 

Aparentemente, a política educacional postulada pelo MEC é inspirada em princípios louváveis, tanto que a opinião corrente também aparenta aprová-la. Mesmo alguns críticos que contra ela se pronunciaram, como é o caso do professor Evanildo Bechara, invocam apenas argumentos restritos ao pragmatismo social, que bem entendido significa zelar pelas oportunidades de ascensão social dos estudantes. Dizendo melhor, é preciso induzir o estudante à aprendizagem da norma culta por constituir ela uma das precondições de ascensão profissional baseada na educação escolar. O buraco é mais embaixo, como reza o lugar comum. O episódio que aqui discuto é antes de tudo um sintoma entre muitos de uma pedagogia que mais e mais se impõe nas nossas escolas e o próprio MEC, instituição reguladora do nosso sistema educacional, tende a promover. 

Dado que me falta autoridade para discutir aspectos mais amplos e precisos da nossa política educacional, prendo-me unicamente a algumas observações de caráter geral. Formar a criança e o jovem para o exercício da cidadania, um dos alvos da educação, é um ideal agora rotineiramente deformado por idiotices como o slogan “criança cidadã”, que evidentemente supõe a consciência e o exercício da cidadania na infância. Que dizer de um disparate desses? Outro de circulação ainda mais ampla, verdadeiro refrão da pedagogia permissiva e enganadora de adoção generalizada, reside na ilusão de supor que a aprendizagem deve basear-se no prazer. Aprender brincando, aprender gozando, são lugares comuns na representação da experiência educativa. Esse disparate circula nos clipes publicitários das instituições educacionais difundidos pela mídia e, o que é mais grave, é de fato adotado pela escola em geral, assim como em muitos projetos e programas pedagógicos. 

Voltando ao assunto específico deste artigo, introduzir o aluno no universo da norma culta da língua foi sempre um dos objetivos do sistema escolar. Do contrário, qual o sentido de educá-lo? Quero dizer, se o objetivo é mantê-lo prisioneiro do código restrito que emprega, reflexo aliás da sua subordinação social e das condições culturais restritas características de um ser em formação, por que então puni-lo com as agruras necessárias de qualquer processo educativo? Ninguém aprende sem esforço, disciplina e constância, tenhamos o bom senso de admitir essa platitude implicada em qualquer experiência de aprendizagem. Ninguém toca violão sem fazer calo nos dedos que desenham uma sequência de acordes no braço do instrumento, assim como ninguém se torna um craque de futebol, valho-me do exemplo mais universal da cultura contemporânea, sem muito suor, aplicação e tenacidade. Se a aprendizagem que qualifica os atores para o reino do entretenimento é assim, o que dizer no âmbito da escola, da educação formal? Os lugares comuns que acabo de mencionar seriam inteiramente dispensáveis, não fosse o clima corrente de fantasia publicitária em que passamos a viver na mídia, nas escolas, nas práticas e representações culturais dominantes. 

O populismo pedagógico que denuncio neste artigo é mais grave, também de percepção restrita, porque ele se mascara sob as vestes de uma ideologia aparentemente muito louvável. Ele supostamente se põe em defesa dos oprimidos, das camadas socialmente subordinadas ou ainda das classes desprivilegiadas, como reza outro lugar comum. Por isso é proposto por pessoas que se identificam como de esquerda, quem sabe revolucionárias. Tenhamos no entanto a coragem de afirmar que serve em termos efetivos apenas para manter o estudante pobre no estado de subordinação social que a educação deveria concorrer para transformar. Um dos meios de se alcançar tal ideal consiste precisamente no acesso ao código elaborado da língua, ou na assimilação da norma culta que conduz à consciência crítica da sociedade, à capacidade cognitiva de propor alternativas para a ordem social existente, para o estado de desigualdade e exploração corrente na sociedade brasileira. Introduzir o aluno no universo da norma culta significa, noutros termos, abrir os horizontes da sua consciência para a crítica dos preconceitos e ideias feitas enraizadas no solo social onde domina a consciência espontânea. 

Já que os propositores da pedagogia populista e pseudoigualitária invocam argumentos ideológicos de esquerda, quando não francamente revolucionários, conviria ressaltar que nenhum revolucionário que conheço confiou na consciência espontânea do povo. Karl Marx, líder supremo do comunismo moderno, denunciou a consciência espontânea do povo, assim como,nas suas palavras, a idiotia rural, que precisaria ser superada como precondição da revolução proletária. Lênin foi mais longe e postulou a necessidade do revolucionário profissional, cuja função maior seria o exercício de um apostolado revolucionário intransigente, já que o povo, mergulhado na consciência espontânea e alienada, jamais se mobilizaria em favor da revolução, fato que a história das revoluções parece comprovar. A evidência disponível – ou a que conheço, noutras palavras - indica que não houve na história revolução baseada na consciência espontânea do povo. 

Mas deixemos a revolução de lado, já que ela não figura nos meus propósitos ideológicos e de resto não identifico nenhuma possibilidade revolucionária no horizonte da história acaso comparável ao figurino das revoluções que sacudiram o século 20. Os limites e fins que viso são bem mais modestos, como suponho sejam também os do MEC e os do establishment pedagógico. O que tenho em mente é o que já assinalei neste artigo: a assimilação da norma culta da língua, ou do código linguístico elaborado, como uma das precondições de uma consciência social crítica, passível assim de propor mudanças necessárias no quadro de uma sociedade caracterizada por condições iníquas de desigualdade e exploração do povo. Propor orientações pedagógicas do tipo que discuto neste artigo, atinentes ao ensino da língua portuguesa, é apenas concorrer em termos efetivos para a manutenção das condições sociais que a pedagogia populista supostamente combate. 
Recife, 15 de maio de 2011.

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