Destino
Potência misteriosa e personificada que, no pensamento antigo (nomeadamente, na tragédia grega e no estoicismo) rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do homem.
Contrariamente ao determinismo, (que se aplica sobretudo aos acontecimentos naturais) o destino é uma lei cega, fixada de antemão, que o homem não conhece e à qual está sujeito e não consegue escapar (ver, como exemplo, Édipo, o herói da tragédia grega). Como tal, significa uma recusa da liberdade.
O livro A Moral Antiga de Léon Robin dedica ao tema algumas páginas: O voluntário e o involuntário; destino e liberdade (p. 126-139). Faz-se nelas um percurso pela filosofia (grega) clássica, começando em Sócrates, que identifica o involuntário com a ignorância. Platão mantém-se fiel a esta concepção, defendendo que tal ignorância é o resultado de uma má constituição física ou de má educação (ver Hípias II). Retomando esta perspectiva, Aristóteles defenderá, além da ignorância, uma outra causa para o que é involuntário: o constrangimento -- mas salienta que toda a opção moral é voluntária.
Quando a especulação filosófica incide sobre a noção de Destino, o problema do voluntário/involuntário transforma-se num problema metafísico: o do livre arbítrio. O desenvolvimento da astrologia (a que os filósofos gregos, pelas suas doutrinas acerca da divindade dos astros, não são alheios) favoreceu a antiga crença de que, tal como as coisas estão sujeitas à necessidade que impõe a ordem à Natureza, também os homens têm a sua sorte, o seu "quinhão" (moira significa parte,porção de território / o que convém a cada um). Perguntam-se então os filósofos se existe em nós um poder capaz de vencer (ou, pelo menos, de se conciliar com) o destino.
Platão tenta satisfazer exigências contraditórias, balanceando-se entre a contingência e a necessidade. No famoso mito da República, Láquesis (uma das 3 Moiras) tem no seu regaço fichas para um sorteio -- símbolo da contingência -- e ainda "padrões" de existência; cada alma deve escolher o Génio (Demónio) que a acompanhará na sua existência, de entre uma série de escolhas, cuja ordem foi tirada à sorte. Uma vez realizada a escolha, toda a existência é necessidade. Ou seja, cada alma escolhe o seu destino, mas o destino escolhido é irrevogável: "Platão não pretende renunciar ao Destino e, por outro lado, quer tornar Deusinocente do mal que fazemos" -- numa atitude que "é, ao mesmo tempo, inspirada e arruinada pelo desejo de dar à moralidade um valor original" (p. 131) [ver livros I e X das Leis]. A escolha é "enfermidade" reservada às almas "que não participaram" da vida filosófica: os filósofos, esses estão isentos "desta enfermidade que é a liberdade infernal da escolha" (p. 132).
Aristóteles tem uma posição semelhante: a nossa moralidade e a nossa felicidade parecem estar nas nossas mãos, mas a nossa escolha faz-se entre possíveis e reporta-se a um acto futuro. A posição de Aristóteles é sobretudo uma posição contra certos socráticos: os filósofos da Escola de Mégara, defensores do fatalismo lógico. Para estes, "de dois futuros, apenas um é possível: aquele que, sendo verdadeiro para toda a eternidade (porque a verdade é una e absoluta), o é também para toda a eternidade real, excluindo o outro, por consequência, como seu contraditório" (p. 132). Porém, para Aristóteles, só "duas espécies de homens estão perante um único fim, perfeitamente determinado, actualmente activo sobre o seu espírito: o viciado, que se vincula ao objecto do seu vício, e o Sábio, que possui uma recta noção do acto que está em causa" (p. 133).
Atento ao fatalismo lógico dos megáricos (tal como ao "necessitarismo" físico de Demócrito) está também Epicuro, em cuja filosofia aparece um desejo profundo de liberdade individual, manifesto na crença (natural e primitiva) no poder do elogio ou da censura e dos conselhos relativos à conduta -- uma crença que implica a existência em nós de um factor de independência.
Se "deve encontrar-se em algum lado, no estado puro, a noção de liberdade moral, não será num dogmatismo, qualquer que ele seja, mas numa filosofia suficentemente audaciosa para sustentar, de um modo geral, que não existe verdade rigorosa, que nós próprios construímos as nossas certezas" (p. 135). Tal é a essência da doutrina de Carnéades que, depois de Arcesilau, continuou a desenvolver na Academia os aspectos "probabilistas" da filosofia de Platão -- simultaneamente contra o indeterminismo de Epicuro e, sobretudo, contra o determinismo especial dos Estóicos.
...dos Estóicos, sobretudo de Crisipo. Crisipo distinguiu o Destino da Necessidade: "esta, dizia ele, é o princípio de um 'constrangimento'; o Destino, pelo contrário, limita-se a 'ligar uns aos outros' acontecimentos, sendo cada um, em si mesmo, um puro possível" ('confatalidades', no dizer de Crisipo). Deste modo pensava evitar o fatalismo e a objecção do argumento preguiçoso (atitude de quem se limita a aguardar de braços cruzados o que lhe tocar em sorte): o Destino é apenas a causapróxima, isto é, uma condição antecedente necessária, ocasional e, por si mesma, insuficiente -- a causa principal, pelo contrário, exprime a espontaneidade própria do agente, determinando o efeito de um modo real. "Uma comparação famosa ilustrava essa concepção: um cone e um cilindro estão em equilíbrio no cimo de um declive; o equilíbrio é desfeito por um empurrão -- causa próxima --; os dois corpos rolam no declive; mas -- causa principal -- um rola como um cone, o outro como um cilindro" (p.138).
"Mas poderia perguntar-se a Crisipo (como, aliás, a Leibniz, a quem essa doutrina influenciou profundamente): que liberdade é essa, que em nada mais consiste do que em consentir naquilo que, sem nos constranger, no entanto, nos determina?" Aqui se constata "o profundo amoralismo da moral estóica" (p. 139) -- amoralismo em que tropeça igualmente a filosofia de Plotino (que escreveu um tratado sobre o Destino).
Citação: "O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?" (Mia COUTO - Terra Sonâmbula. 2ª ed. Lisboa: Caminho, 1996, p. 217).
http://ocanto.esenviseu.net/lexd.htm#Destino
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